A deportação em larga escala de imigrantes nos Estados Unidos evidenciou a dura realidade enfrentada por muitos que abandonam seus países de origem em busca de uma vida melhor. No coração da Amazônia, Manaus é também um refúgio acolhedor para inúmeros imigrantes determinados a construir um melhor futuro.
O movimento começou a ser observado com mais clareza em meados de 2010, quando muitos haitianos passaram pela capital amazonense após o país da América Central sofrer uma catástrofe natural, além da pobreza que afetava grande parte da população. De 2010 a 2017, cerca de 11 mil cidadãos do Haiti vieram para Manaus, segundo dados da Pastoral dos Migrantes, da Igreja Católica.
A intensa movimentação continuou nos anos seguintes, quando venezuelanos começaram a chegar em Manaus após a crise financeira que o país enfrenta. O Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), que reúne dados da Polícia Federal (PF), destacou que mais de 94 mil refugiados e imigrantes de diferentes nacionalidades foram registrados pelo Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra) em Manaus, de 2018 a 2024.
Sobrevivência
A crise política e econômica da Venezuela mudou para sempre a vida da família do jovem Elvis Colmeiro, de 20 anos. Anos atrás, quando chegou a Manaus, ele e sua família enfrentaram diversos desafios quando saíram de seu país natal para tentar a vida no Amazonas.
“Moro há 6 anos aqui. Primeiro veio meu pai, depois minha mãe e depois ela voltou para buscar eu e meus irmãos. Somos 3 irmãos. Na época, eu tinha 14 anos. Atualmente, a Venezuela vive uma realidade de Ditadura, onde fica muito difícil morar. Quando não é pelo econômico, é pelo social, segurança péssima, saúde precária, educação em decadência, o país teve um retrocesso em todos os sentidos. Parou no tempo”, afirmou Colmeiro.
Assim que chegou à capital amazonense, um dos primeiros desafios encontrados era entender o idioma falado no país, já que o Brasil é um dos poucos países da América Latina que não fala espanhol.
“A principal dificuldade que tivemos foi o idioma. Sempre, a principal dificuldade em vir ao Brasil será o idioma, mas não foi um impedimento em nada, graças a Deus, e com o tempo já aprendi o idioma e até as gírias manauaras”, relata o jovem.
E para conseguir sobreviver, a luta constante dos imigrantes, além da comunicação, é conseguir um emprego. Segundo Elvis, que atualmente trabalha como videomaker, Manaus é uma “terra de oportunidades”, mesmo que seja no mercado informal.
“Manaus é uma cidade que quem quer, faz dinheiro. Emprego formal é um pouco difícil de achar, mas o informal é bem abundante na cidade, até mesmo pelos brasileiros. Sempre houve trabalho para nós, quando não era formal, era informal ou até mesmo, empreendimento próprio até achar algo formal”, conta.
Sonho
Porém, nem todos os imigrantes que vivem em Manaus estão na capital por questão de necessidade. A empresária e cabeleireira Shirley Rojas chegou à cidade há 12 anos, vinda do Peru, para realizar um sonho antigo.
“Eu vim porque eu tinha desejo, desde quando eu era uma criança, de morar no Brasil. Então, para mim, o Brasil é sonho. Eu sempre fui apaixonada por futebol. Meu ídolo é o Ronaldo Fenômeno”, disse a peruana.
Os primeiros meses em Manaus não foram fáceis para a cabeleireira, já que durante o trajeto, ela ouviu que a capital amazonense era bastante violenta.
“Quando eu estava vindo pra Manaus, teve muita gente que me fez ter medo, de que aqui era muito difícil e era muito perigoso também. E se me vissem com cara de estrangeiro, ia ser retirado na hora. Eu fiquei quase dois meses sem poder sair de casa, de ser trancada na casa do meu primo. Eu morei com meu primo nos primeiros meses, aí ele começou a me dizer que não acontece nada, que ele também chegou aqui sem conhecer quase ninguém e nunca ninguém fez nada a ele. Então eu comecei a sair aos poucos, sair para comprar”, relembra Shirley.
O primeiro emprego da peruana na capital amazonense foi com vendas, a mesma ocupação que tinha no Peru antes de vir ao Brasil. Mas Shirley tinha uma outra paixão, e quando surgiu a oportunidade, se profissionalizou e hoje administra o salão de beleza Studio Victoria.
“Eu sempre gostei da área do cabelo, de me cuidar sempre. Então, quando eu vi que o salão era muito caro, disse: ‘Eu preciso fazer curso, para poder cuidar do meu cabelo’. Quando comecei a fazer o curso, eu me identifiquei na área da colorimetria. É uma coisa que eu me identifico, criação de cores novas e tudo mais. Aí disse: ‘Nossa, eu acho que eu vou começar a trabalhar’”, detalhou.
Xenofobia
E todo o esforço para se estabelecer em um novo país é acompanhado por um tipo de preconceito enraizado na sociedade: a xenofobia. A prática, apesar de ser crime no Brasil, não impede que muitos imigrantes sofram algum tipo de discriminação ao procurar serviços básicos no país.
“Esse sentimento nacionalista acaba construindo ufanismos, construindo um sentimento de identidade, muitas vezes exacerbado, e que coloca em questão de subalterna o outro, aquele que não pertence ao local de onde ele veio. É isso que a gente tem acompanhado recentemente, principalmente em países do centro do capitalismo, onde isso é cada vez mais exacerbado. Mas esse sentimento vem também de uma certa frustração social, que é partilhada por aquelas pessoas da classe trabalhadora, da classe média, que é partilhada no sentido de que as conquistas prometidas pelo atual sistema que a gente vive nunca são cumpridas para essas classes”, enfatiza o sociólogo Israel Pinheiro.
Ao Em Tempo, Elvis Colmeiro conta que já passou por experiências desse tipo em Manaus, tanto no âmbito virtual quanto no pessoal.
“Tem sido poucas as vezes que tenho sofrido discriminação, mas tem ocorrido, sim. Uma foi na rede social e outra foi quando ainda estava no ensino médio. Uma garota me insultou pela minha origem. Minha reação foi de revolta na hora, mas nunca generalizei pois sei que não são todas as pessoas assim. O Brasil não é um país xenofóbico”, enfatiza.
Shirley Rojas também passou pela situação, quando ao tentar se especializar na sua atual profissão, ouviu de uma colega que ela não era bem-vinda na cidade.
“Quando eu estava fazendo o curso, teve uma menina que, muitas vezes, falou que eu deveria voltar para o meu país, que eu não deveria estar aqui. Depois disso, nunca mais tive problema com ninguém”, relatou a peruana.
Os comentários xenofóbicos são recorrentes na sociedade, de onde parte a alegação que o Brasil é “a casa da mãe Joana”, já que o país recebe um grande número de imigrantes anualmente. A fala é criticada pelo sociólogo Israel Pinheiro.
“Quando a gente escuta esse tipo de fala, esse tipo de frase, na verdade, a gente está se deparando com alguém que é ignorante. A pessoa que fala esse tipo de coisa, ignora todos os benefícios e todas as condições que a imigração traz. E é importante que se entenda, a mobilidade humana existe bem antes das próprias fronteiras serem estabelecidas ao longo do século XX, XIX. Ou seja, a mobilidade humana é algo secular, talvez milenar. Se os primeiros humanos não tivessem saído da África, o que seria da gente?”, questiona o profissional.
E para que o imigrante tenha acesso aos serviços básicos do país, é preciso que as cidades auxiliem na formalização do estrangeiro diante do governo federal. O levantamento feito pela ONG Visão Mundial apontou que 67,4% dos imigrantes que vivem no Brasil não se encontram inseridos no mercado de trabalho.
Formalização
Para receber assistência, a regularização do venezuelano Elvis foi feita logo após a sua chegada no país. Mesmo com uma pequena demora, o jovem passou ter direitos essenciais que garantiram sua permanência na cidade.
“[Regularizei] em 2018 mesmo, muitos estavam vindo, era bem menos que nos anos posteriores, então querendo ou não, era mais organizado e um pouco mais demorado que hoje em dia, mas mesmo assim não tivemos muita dificuldades graças a Deus, o que mais nos impendia na época era achar os lugares e nos acostumar a nos locomover sermos novos na cidade”, contou o videomaker.
Já a regulamentação de Shirley só veio após um acordo entre Brasil e Peru. “Eu entrei ilegal. Quando teve, eu acho que foi em 2013, não lembro exatamente, que Peru e Brasil tiveram aquele convênio do Mercosul, que deu oportunidade a todos os imigrantes tirar os seus dados, a se regularizar, eu aproveitei aquele convênio, então eu tirei a minha documentação”, relembra.
Regularização e orientação
Com o intuito de promover mais dignidade para quem chega no estado, o Governo do Amazonas auxilia na regularização e orientação sobre documentos e serviços de cidadania e direitos humanos aos migrantes, refugiados e apátridas.
O serviço é feito no Posto de Interiorização e Triagem (PTRIG), que fica localizado no Pronto Atendimento ao Cidadão (PAC) Compensa, na avenida Brasil, 2.665, com atendimento de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.
No local, coordenado pela Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc), o público tem acesso a serviços de solicitação de refúgio e residência no estado, substituição e emissão de segunda via da Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), além de retirada de cédulas, que necessita de agendamento pelo Sistema de Registro Nacional Migratório da Polícia Federal – serviços.dpf.gov.br.
A gerente de Migração, Refúgio, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo (GMIG), Luciane Lima, explica que o PTRIG está ligado a Secretaria Executiva de Direitos Humanos (Sedh) da Sejusc e é um dos equipamentos do estado para auxiliar e viabilizar os direitos dessa população majoritariamente em vulnerabilidade social.
“Esses serviços são importantes na viabilização de direitos humanos para os migrantes, pois é uma forma de fazer com que essas pessoas tenham acesso a sua documentação e, assim, acesso às principais políticas públicas do nosso país”, detalhou.
“Além disso, é a partir da formalização deste pedido tanto de residência quanto refúgio que o cidadão poderá solicitar seu CPF e carteira de trabalho no país, os dois principais documentos que essa população tem acesso”, complementou Luciane Lima.
Só em 2024, a Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc) realizou cerca de 83 mil atendimentos a migrantes.
O atendimento se dá pelo encaminhamento à Polícia Federal para emissão do Registro Nacional Migratório, ou abrigos, quando há necessidade e disposição nos abrigos da cidade.
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